terça-feira, 30 de setembro de 2025

Pode uma emancipação radical refrear o mundo tecnificado e o colapso anunciado?

Este post nasce da leitura dos ensaios, traduzidos recentemente para português, de dois filósofos europeus (ambos nascidos no século XX, mas de gerações diferentes): ‘Novo Iluminismo Radical’ (2017/2023) da catalã Marina Garcés e ‘Nós, Filhos de Eichmann’ (1964/2025) do alemão Günther Anders. O que mais me interessou foi o entrelaçamento das suas perspectivas (Garcés cita no seu ensaio o magnum opus de Anders: ‘A Obsolescência do Homem’) sobre como pensar e lidar com as ameaças existenciais que pairam sobre a civilização industrial e a condição humana. Cruzarei estas reflexões com a do pensador espanhol Amador Fernández-Savater no seu artigo recente intitulado ‘La rebelión frente al mal’ (2025), onde evoca Anders (e Hannah Arendt).

O momento actual é marcado por uma sensação paradoxal. Por um lado, nunca tivemos tanta consciência da precariedade do nosso mundo: a crise ambiental, o esgotamento de recursos, as desigualdades globais e as novas ameaças da guerra ou de um conflito nuclear, tornam impossível pensar o futuro sem pressentir o colapso (ver também o meu post de Julho). Por outro, a vida quotidiana parece manter-se inalterada (para alguns), como se estas ameaças não fossem reais, ou como se já não fosse possível enfrentá-las. Esta coexistência entre a consciência do desastre e a ‘normalidade’ aparente é o ponto de partida do ensaio de Marina Garcés.

Ao mesmo tempo, se olharmos para o século XX, encontramos em Günther Anders um diagnóstico igualmente inquietante: a tecnificação crescente da vida transformou-nos em peças de uma maquinaria global que excede a nossa compreensão e anula a nossa capacidade de agir eticamente. Em Nós, filhos de Eichmann (escrito sob a forma de uma carta dirigida a Klaus Eichmann, filho de Adolf Eichmann), Anders mostra como a herança do nazismo não é apenas um passado ‘monstruoso’, mas uma condição presente: a banalização do mal e a diluição da responsabilidade tornaram-se características estruturais da modernidade e do mundo tecnificado.

Garcés e Anders, embora em contextos diferentes, enfrentam o mesmo problema: como pensar a responsabilidade humana num mundo em que o poder do colectivo, do técnico e do sistémico parecem esmagar a acção individual? O que podemos fazer quando sabemos que já vivemos no “depois” (Garcés) ou quando nos descobrimos incapazes de assumir as consequências das nossas acções (Anders)?


Garcés
parte, por um lado, de um diagnóstico que ela descreve assim: “O facto decisivo do nosso tempo é que, em conjunto, sabemos muito e, ao mesmo tempo, podemos muito pouco. Somos, em simultâneo, ilustrados e analfabetos.” Por outro, defende que vivemos numa condição póstuma. Esta metáfora significa que nos movemos como sobreviventes de algo que ainda não aconteceu totalmente, mas cujo resultado já sabemos (ou pressentimos). O colapso ambiental, a erosão das democracias, a precarização generalizada da vida e a lógica extrativista do capitalismo global fazem com que o presente seja experimentado como ruína antecipada. Garcés clarifica que não se trata do conceito de pós-modernidade dos anos 1980 e 1990, que anunciava o fim das grandes narrativas e celebrava a fragmentação, a ironia e a pluralidade. A condição póstuma, em contraste, não é festiva nem libertadora. É pesada, marcada pela consciência da insustentabilidade. É como viver numa casa que ameaça ruir, mas onde continuamos a cozinhar, dormir e trabalhar como se tudo fosse durar para sempre. Garcés faz ainda questão de destacar que a condição póstuma é um corolário do projecto da modernidade (ou modernização), mas não necessariamente do iluminismo, que ambicionava a real emancipação dos cidadãos contra a credulidade e o autoritarismo (político, religioso, moral). Para Garcés, o projecto histórico da modernização, deturpou o carácter emancipatório das ideias iluministas, sendo caracterizado pela dominação das elites europeias, que conduziu ao colonialismo e ao capitalismo, e promovendo a dualização da realidade em todas as suas dimensões, além da hierarquização do seu valor, que resultaram nas noções (ocidentocêntricas) de progresso e de desenvolvimento.

Garcés recorre às reflexões de outros autores, como a escritora e jornalista bielorrussa Svetlana Alexievich, que recolheu vozes do quotidiano em cenários de catástrofe como Chernobyl ou a guerra do Afeganistão. Alexievich fala de uma “catástrofe do tempo”, afirmando que já não vivemos em tempos lineares, de progresso ou de memória, mas em tempos interrompidos, onde o futuro não se abre e o passado não cessa de pesar. Esta experiência temporal de viver no depois, sem horizontes claros, ressoa fortemente na noção de condição póstuma.

Face a este diagnóstico, Garcés não se resigna. Pelo contrário, reivindica um novo iluminismo radical. Trata-se de recuperar o gesto emancipador do iluminismo clássico — a renúncia da credulidade, a confiança no pensamento crítico e na emancipação coletiva — mas libertando-o das ilusões universalistas, eurocêntricas e lineares do século XVIII. Ao mesmo tempo, Alexievich defende uma “sabedoria do não-saber”. Diante do excesso de informação e da impotência face às catástrofes, trata-se de reconhecer os limites da nossa compreensão e de valorizar o testemunho, a escuta ou o silêncio como formas de resistência. Garcés vê nessa sabedoria uma chave ética: não fingir que sabemos ou controlamos tudo, mas assumir a fragilidade como parte da condição humana contemporânea: “O não-saber, a partir deste gesto soberano de se declarar fora do sentido já herdado, é o contrário do analfabetismo como condenação social. (…) Declararmo-nos insubmissos à ideologia póstuma é, para mim, a principal tarefa do pensamento crítico hoje.

O iluminismo radical de Garcés reúne uma série de características centrais. É um pensamento situado na crise: não parte da promessa de progresso, mas da consciência do colapso; e não esconde as ruínas, encontrando nelas um ponto de partida. É também uma crítica ao ‘presentismo’: em vez de vivemos presos ao “agora”, incapazes de pensar o futuro, o iluminismo radical procura reabrir o tempo da imaginação e da possibilidade. Contra o individualismo neoliberal, Garcés aposta na inteligência coletiva: na construção de um “nós” crítico, uma comunidade de pensamento e acção que reconhece a interdependência. Mas também na responsabilidade partilhada: a emancipação não como triunfo de um sujeito autónomo, mas o assumir de responsabilidades comuns no seio de uma vida planetária. Garcés escreve: “A tempestade iluminista (…) é um combate do pensamento contra os saberes estabelecidos e as suas autoridades, um combate do pensamento ao qual se confia a convicção de que, pensando, podemos tornar-nos melhores, e de que só merece ser pensado aquilo que (…) contribui para isso. Resgatar esta convicção não é acorrer em resgate do futuro com que a modernidade sentenciou o mundo ao não-futuro. Muito pelo contrário, é começar a encontrar os indícios para alinhavar novamente um tempo do vivível.” Nesta perspetiva, a sabedoria do não-saber evocada por Alexievich não é ignorância, mas uma disposição para aprender com a fragilidade e para agir sem garantias. É o contrário da húbris tecnocientífica e do cinismo pós-moderno: é uma abertura humilde e radical à tarefa de pensar e viver em comum.


Se Garcés fala a partir da crise contemporânea, Anders escreveu no rescaldo do nazismo e da bomba atómica. O seu diagnóstico, contudo, ressoa fortemente no presente. Em Nós, filhos de Eichmann, Anders introduz uma tese perturbadora: Eichmann, o burocrata que organizou logisticamente a deportação de milhões de pessoas para campos de extermínio, não foi um monstro singular, mas o protótipo do homem moderno. A sua obediência cega, a sua incapacidade de pensar eticamente o que fazia, são sintomas de um mundo onde a técnica, a burocracia e a divisão do trabalho dissolvem a responsabilidade individual.

Segundo Anders, o problema não é apenas histórico - é estrutural. Vivemos num mundo tecnificado, imbuído do espírito do projecto da modernidade, em que a máquina excede a nossa sensibilidade e a nossa imaginação, e, consequentemente, o nosso pensamento ético. Produzimos armas capazes de destruir o planeta, mas não conseguimos conceber moralmente a magnitude do seu efeito. Este descompasso entre capacidade técnica e capacidade ética é o núcleo da sua crítica. Ele fala de maquinidade: o predomínio de sistemas técnicos que se autonomizam e reduzem o humano a peça dispensável. Nesse contexto, a perda da natureza humana é a desumanização que ocorre não apenas pela violência extrema (Auschwitz, Hiroshima), mas pela normalização de uma vida onde as pessoas deixam de ser sujeitos responsáveis e tornam-se peças de um engrenagem. No seu ensaio, Anders alerta-nos que não basta lamentar o passado. Precisamos reconhecer que somos todos “filhos de Eichmann”, isto é, herdeiros de um mundo em que a responsabilidade ética e social foi tecnicamente neutralizada - e Anders não sabia ainda o que viria a seguir, com a revolução digital e a IA.


Para Anders, os desastres do século XX foram simplesmente o resultado lógico de um processo pernicioso que já estava em curso há muitos anos, envolvendo a exclusão gradual da humanidade de todos os processos de produção – e, em última análise, do mundo criado por esses processos. A verdadeira catástrofe neste sentido, que Anders esperava tornar visível, residia na transformação da condição humana, transformação essa que se tornara tão naturalizada e imperceptível quanto destrutiva. No entanto, Anders encontra também uma chave de saída a partir do exemplo do 'piloto de Hiroshima', Claude Eatherly (ver adiante).

Apesar da distância temporal e conceptual, os pontos de contacto entre Garcés e Anders são evidentes. Garcés descreve a experiência de viver no depois, num tempo que perdeu continuidade. Anders mostra como a técnica gera esse mesmo efeito: a máquina produz consequências que nos ultrapassam, suspendendo a nossa capacidade de temporalizar o futuro. Em ambos os casos, o tempo humano é esmagado por forças que não controlamos.

A insustentabilidade de Garcés encontra eco na desumanização de Anders. Ambos mostram que a vida está ameaçada estruturalmente, seja pelo colapso vital e planetário, seja pela incapacidade de manter a consciência ética. Garcés propõem uma sabedoria que aceita limites e fragilidade. Anders, pelo contrário, mostra que já vivemos numa impotência moral que não é escolhida, mas imposta pelo mundo maquinizado. O contraste é revelador: entre uma ética da humildade activa e um diagnóstico da neutralização técnica.

No cruzamento destas reflexões, a responsabilidade aparece como desafio inadiável, embora profundamente frágil. Garcés aposta numa responsabilidade coletiva, relacional, planetária, por via de uma emancipação que ilumina caminhos do que podemos fazer. Anders alerta para a erosão da responsabilidade individual em sistemas técnicos. Alexievich acrescenta a importância de ouvir, testemunhar, reconhecer o não-saber como gesto responsável. Ouço aqui também ecos da “response-ability” proposta por Donna Haraway – ver p.ex. aqui. E é ainda por esta via que recorro ao texto de Amador Fernández-Savater, que reflecte sobre a raiz dos males que nos assolam e como interrompê-los, a partir do boicote espontâneo de um evento desportivo - a ‘Volta a Espanha’.


O autor começa por invocar as reflexões de Hannah Arendt (em ‘Eichmann em Jerusalém’ de 1963) e de Günther Anders sobre a origem e natureza do mal (ou talvez antes da maldade), ou seja, da barbárie moderna e do horror da modernidade. Para Arendt, a banalidade do mal é a incapacidade de pensar e a submissão maquinal à hierarquia; para Anders, como vimos, o mal é a incapacidade de sentir e imaginar que resulta da tecnificação da existência e da divisão do trabalho: “Incapacidade de sentir, incapacidade de pensar, incapacidade de imaginar: creio que Arendt e Anders, cada um à sua maneira, associam a disseminação da barbárie e do mal a uma crise geral de responsabilidade, da capacidade de assumir o controlo do que vivemos, de tirar consequências das nossas acções. O mal está inscrito em estruturas que tornam os sujeitos irresponsáveis, transformados em toda a parte em simples objetos que não sabem o que fazem, não sentem o que fazem, não pensam o que fazem.

Fernández-Savater relembra que o pessimismo de Anders é refreado pela sua evocação do caso de Claude Eatherly (com quem manteve correspondência - ver aqui), o piloto de um dos bombardeiros envolvidos no lançamento da bomba sobre Hiroshima, que renegou, a posteriori, o seu papel de herói nacional, entregando-se à causa dos movimentos pacifistas e anti-nucleares. Eatherly torna-se o rebelde por excelência da sociedade tecnificada para Anders, que nos propõe escolher se queremos ser ‘filhos de Eichmann’ ou ‘filhos de Eatherly’: se participamos no ‘monsturoso’ ou se nos rebelamos contra ele. Citando Fernández-Savater: “O que sustenta toda esta estrutura é a desconexão sensível e quotidiana entre as coisas, a descontinuidade entre o que sentimos, o que pensamos, o que imaginamos e o que fazemos. (…) O mal é automático, o mal é o automático. Apaga as consequências do que fazemos, cega-nos para as implicações dos modos de vida em que estamos imersos. O mal propaga-se pela não resistência ao mal.” É aqui que o autor vê o poder dos bloqueios da ‘Vuelta’ em Espanha: o poder da interrupção, que convoca precisamente a suspensão da normalidade, da maquinaria: “A interrupção como modo de ação é capaz de provocar um acontecimento (algo acontece, algo se move, onde tudo o resto estava parado) porque compromete a verdade dos sujeitos, o sentido da vida para eles. Esse é o seu poder, essa é a sua eficácia, esse é o seu único método.” Fernández-Savater convida finalmente a substituir o sentimento de culpa pelo de responsabilidade: “Os automatismos protectores caem, já não podemos simplesmente obedecer, as circunstâncias obrigam-nos a pensar, devemos tirar consequências do que acontece e responder. Assumir a responsabilidade é precisamente isso: responder. Inventar algo a que responder.


O cruzamento entre as reflexões de Anders, Garcés e Fernández-Savater abre uma tensão desafiante. Por um lado, Garcés lembra-nos que mesmo no colapso é preciso insistir na crítica, na imaginação e na responsabilidade coletiva. Por outro, Anders alerta-nos para a profundidade da nossa impotência: somos capazes de fabricar a nossa própria extinção, mas incapazes de a assumir. Fernández-Savater invoca um gesto ético que recusa tanto a desumanização tecnocrática quanto a resignação total.

Talvez o gesto político do nosso tempo seja precisamente sustentar aquela tensão. Nem ceder ao pessimismo absoluto, que nos condenaria à paralisia, nem ao optimismo ingénuo (ou o conformismo), que ignora a gravidade da situação. Por um lado, pensar no limiar: entre a denúncia da máquina que nos excede, a experiência temporal da catástrofe e a invenção de práticas emancipatórias no seio da condição póstuma. Por outro, agir com espontaneidade: a partir de uma sensibilidade e de um pensamento emancipado e crítico, encontrando formas de interromper a barbárie.

Afinal, como lembra Garcés, o iluminismo radical não é a crença num futuro garantido, mas a coragem de afirmar que ainda há algo a fazer, mesmo quando tudo parece condenado. E como lembra Anders, essa tarefa só fará sentido se encararmos de frente a herança de Eichmann, reconhecendo que a responsabilidade não é apenas individual nem abstrata, mas concreta e histórica. Alexievich sugere ainda que essa responsabilidade pode começar na escuta e na aceitação da nossa vulnerabilidade. Fernández-Savater convida-nos a exercitar a nossa responsabilidade como sujeitos políticos, não compactuando com a normalização da barbárie. Entre a consciência do desastre, o gesto ético e a invenção de novas possibilidades, talvez se jogue a nossa derradeira oportunidade de continuar a chamar “humana” (mas não antropocêntrica) à condição que partilhamos.

Leituras adicionais:

Artigo e entrevista no Público sobre o lançamento das traduções portuguesas dos ensaios de Anders e Garcés:

https://www.publico.pt/2025/09/05/culturaipsilon/noticia/gunther-anders-pensador-diante-abismo-humanidade-2145350

https://www.publico.pt/2024/02/21/culturaipsilon/entrevista/marina-garces-esquerda-nao-concentrar-apenas-travar-extremadireita-2080604


domingo, 17 de agosto de 2025

Fadiga, dessensibilização e descarte no Devastoceno

The Wasteocene (…) has been defined as the age of wasting relationships producing wasted people and ecosystems. (O Lixoceno foi definido como a era das relações desgastantes, produzindo pessoas e ecossistemas desperdiçados/desgastados) Marco Armiero

The vastness of devastation is at once vacant and full, spacious beyond measure and running out of room, barren and strewn with debris, a desert and a dump. (A vastidão da devastação é ao mesmo tempo vazia e cheia, espaçosa para além da medida e sem espaço, estéril e coberta de detritos, um deserto e uma lixeira) Michael Marder

Regra do ‘manual de instruções’ do Wasteocene: “Não te perguntes onde vão parar os restos indesejados do teu bem-estar.” (non chiederti dove vanno a finire i resti indesiderati del tuo benessere) Marco Armiero

The diminution of the sensible diminishes who we are, as opposed to what we come to possess. The squashing of the senses by the stimuli dumped onto them is the quashing of our being. (A redução do sensível diminui quem somos, por oposição ao que possuímos. O esmagamento dos sentidos pelos estímulos despejados sobre eles é a anulação do nosso ser) Michael Marder

Já tinha abordado aqui em 2023 o tema da exaustão, não apenas como sintoma dos paradigmas sociais dominantes do produtivismo, do consumismo, do excesso e do desperdício, mas também como condição que nos rouba a capacidade de atenção e cuidado. Retomo-o agora novamente a propósito de documentários recentes das cadeias internacionais France 24 e Deutsche Welle (DW) sobre o tema da fadiga mediática (media fatigue), mas também com base em textos ou livros que empregam as palavras inglesas ‘waste’ ou ‘dump’ para caracterizar as sociedades modernas, recorrendo a neologismos como Wasteocene ou Garbocracy, dos seguintes autores: Zygmunt Bauman (sociólogo e filósofo), Marco Armiero (historiador), Sayan Dey (pensador decolonial e historiador) e Michael Marder (filósofo). O lixo que produzimos e se acumula à nossa volta, mais ou menos à vista de todos, tornou-se um símbolo de uma época, mas é, ao mesmo tempo, o produto de um sistema socioeconómico que extrai, consome e descarta bens ou recursos, sejam eles materiais, naturais ou humanos. Acontece que a palavra inglesa ‘waste’ pode ter significados distintos, como lixo ou desperdício, mas também como desgaste ou devastação. É a partir desta ambiguidade de sentidos que irei desenvolver este escrito.

Um mundo exausto: da fadiga e bulimia informacionais ao Lixoceno (Wasteocene)

Vivemos num ciclo de fadiga e descarte: um mundo sobrecarregado de crises, conteúdo digital e ruído, onde a nossa resposta emocional — apatia ou alienação — torna-se tanto sintoma quanto mecanismo de reprodução das lógicas de consumo, exclusão e destruição. A exaustão e a dessensibilização parecem estados normais de existência. Notícias incessantes, crises sobrepostas, estímulos digitais constantes — tudo se acumula numa sobrecarga que não nos esvazia apenas emocionalmente, mas também politicamente. É um cansaço que prepara terreno para a indiferença - uma forma de anestesia social. Chamam-lhe “crisis fatigue”, “news fatigue”, “internet fatigue” (ver p.ex. aqui). Programas recentes da DW (ver aqui e aqui) documentam e analisam estes processos: exposição prolongada a más notícias e estímulos digitais fragmentados leva a distanciamento e dessensibilização — um tipo de habituação emocional que protege no curto prazo, mas corrói a capacidade de resposta no longo prazo. No primeiro programa, observa-se que “o organismo humano pode habituar-se a estímulos negativos... enquanto o doomscroller passivo se dessensibiliza”; e no segundo, constata-se que a internet manipula as emoções, gerando um estado de anedonia digital. Também a France 24 noticiou (aqui) um fenómeno com impactos semelhantes - a ‘fadiga noticiosa’ - e registou a tendência estrutural resultante de ‘news avoidance’ (ver também aqui), apresentando aquilo que apelidou de “jornalismo de soluções” como antídoto parcial ao sensacionalismo do “jornalismo da catástrofe”. No entanto, nestes documentários as análises não vão ao cerne dos fenómenos que descrevem: o sistema socioeconómico que está na sua origem.

De facto, o torpor da fadiga mediática não é apenas psicológico. Ele é sintoma de uma ecologia política da acumulação e do descarte: aquilo que Marco Armiero, no seu livro de 2021, apelida de Wasteocene (que pode traduzir-se por Lixoceno*) — uma época em que o planeta é reconfigurado como lixeira global, resultado de regimes de extração, barreiras fronteiriças e sacrifício territorial que empurram para longe (e para baixo) os custos da Modernidade. Com aquele termo (proposto pela primeira vez num artigo de 2017), Armiero procura desmistificar a narrativa tradicional do Antropoceno, apontando o capitalismo como a força motriz por trás da crise socioecológica e transferindo a responsabilidade da espécie humana, considerada um grupo indistinto que compartilha a mesma culpabilidade, para um sistema económico e as suas consequências nocivas. O autor enfatiza a natureza contaminadora do capitalismo e a sua persistência no tecido sociobiológico, além de revelar a acumulação de efeitos colaterais, tanto nos corpos humanos quanto no planeta. De facto, o lixo, ou melhor, o refugo, que o livro aborda não é apenas o das lixeiras ou aterros sanitários, mas também o dos seres humanos que o sistema empurra para as margens da sociedade - as comunidades vulneráveis que suportam as dificuldades evitadas por aqueles que desfrutam do bem-estar - que Armiero apelida de “lixeiras socioecológicas”. O autor escreve: “The divide between who and what is worth and who and what is worthless is the key feature of this concept that states loud and clear that we are not in this crisis together. Someone is paying the price for someone else’s well-being.(A divisão entre quem e o que vale a pena e quem e o que não vale nada é a característica fundamental deste conceito que afirma, alto e bom som, que não estamos juntos nesta crise. Alguém está a pagar o preço pelo bem-estar de outra pessoa)

Zygmunt Bauman já havia diagnosticado esta outra face daquele processo no seu livro de 2003 “Wasted Lives: Modernity and its Outcasts”. Segundo o autor, a Modernidade, na sua dinâmica de “ordem” e progresso, produz “vidas desperdiçadas” — populações redundantes para a lógica do mercado e da mobilidade global, tratadas como excedentes a gerir, deslocar ou conter. Bauman defende que esta redundância é consequência da disseminação global e do triunfo dos processos de modernização: “A produção de ‘resíduos humanos’ [human waste]… (o ‘excessivo’ e o ‘redundante’, isto é, aqueles que não puderam ou não foram desejados para serem reconhecidos ou autorizados a permanecer) é um resultado inevitável da modernização”. Estes processos podem, em grande parte, ser entendidos em termos da colonização de todos os aspectos da vida, de todos os espaços e lugares, pelas forças, práticas e processos de mercado sob regimes de acumulação de capital. À medida que os processos de modernização se tornaram verdadeiramente globalizados, à medida que “a totalidade da produção e do consumo humanos se tornou mediada pelo dinheiro e pelo mercado, e os processos de mercantilização, comercialização e monetarização dos meios de subsistência humanos penetraram em todos os cantos do globo”, então a “crise da indústria de eliminação de resíduos humanos” (ênfase no original) tornou-se mais aguda.

Num ensaio recente, Sayan Dey, que cita quer Bauman, quer Armiero, introduz o conceito adicional de “waste-ing”, que define como “a social, political, and ecological practice of consistently producing wasted bodies, identities, ideologies, and ecologies” (uma prática social, política e ecológica de produção sistemática de corpos, identidades, ideologias e ecologias descartados/devastados). Dey afirma que o desperdício, enquanto entidade física e ideológica, se realiza através da legitimação da desumanização, da exclusão e da carnificina, e da deslegitimação da humanidade, da inclusão e do cuidado. O autor reforça as teses de Bauman e Armiero, defendendo que, no Lixoceno, o mundo com humanos, plantas e animais foi convertido numa “lixeira gigantesca” que é produzida e mantida através de práticas de fortificações e fronteirizações pelas comunidades sociopolitica- e economicamente privilegiadas para garantir que os seus espaços geopolíticos estão livres da “sujidade” que eles próprios produziram: escravos, refugiados de guerra, refugiados climáticos e migrantes. Dey refere que, no entanto, a era actual não compreende apenas vitimização e opressão, mas também abrange condições de resistência. Através de uma experiência contínua de ser discriminado e violentado, o corpo descartável torna-se um corpo político, insurgindo-se através do “commoning” (ver adiante). No seu livro Garbocracy: Towards a Great Human Collapse, Sayan Dey explora como a acumulação e o descarte de lixo na Índia são impulsionados por factores diversos, incluindo aspectos sociais, culturais, políticos, económicos, comunitários, de casta ou religiosos. Ele argumenta que as experiências desagradáveis geradas pela visão e pelo cheiro do lixo não são apenas físicas, mas também psicológicas, neurológicas, estruturais, institucionais, tangíveis e intangíveis. O descarte inadequado de lixo em locais públicos gera diversos problemas de saúde e impacta negativamente o estado social, cultural, político e económico de indivíduos e comunidades. O objetivo principal do livro é revelar como os padrões e intenções sociopolíticas por trás do descarte gradualmente transformam montanhas de lixo em entidades autoritárias que governam os padrões habituais de pensamento, comportamento e acção dos seres humanos. A obra introduz o conceito de "garbocracy" para revelar como o poder e a opressão estão embutidos na organização do espaço, das comunidades e do conhecimento. O livro enfatiza a necessidade de se libertar não apenas do lixo espalhado por toda parte, mas também da lógica que organiza a divisão entre pureza e imundície, desperdício e valor.

A fadiga e o descarte alimentam-se mutuamente

Como vimos, a fadiga informacional e a dessensibilização não são apenas efeitos colaterais da tecnologia; são tecnologias sociais ao serviço de um modelo que precisa de atenção volátil, rotatividade permanente e obsolescência programada — de bens, de afectos, de narrativas e, finalmente, de vidas. No capitalismo de plataformas e da financeirização, o valor extrai-se onde houver fluxo (cliques, dados, mercadorias, pessoas). O resultado é uma gramática do descarte:

- descartamos atenção: quando tudo compete, nada importa por muito tempo e temos terreno fértil para apatia e “doomscrolling”;

- descartamos afectos: as emoções são capturadas, aceleradas e esgotadas; quando a dor e o medo são ‘conteúdos’, a compaixão e a confiança transformam-se em ruído de fundo;

- descartamos territórios e pessoas: são criadas zonas de sacrifício ambiental e cordões sanitários para ‘excedentes’ humanos – refugiados, trabalhadores descartáveis, populações racializadas –,que Bauman descreveu como gestão do excesso humano”;

- descartamos o próprio mundo: o Lixoceno de Armiero é a materialização geopolítica desse ciclo: fortificações e fronteiras mantêm ‘limpos’ os espaços dos privilegiados, enquanto exportam ‘sujidade’, risco e morte.

Assim, fadiga (subjetiva) e descarte (objetivo) são duas faces do mesmo processo. A saturação que nos anestesia é a mesma que mantém invisível a logística do extermínio lento — do lixo digital ao ar irrespirável, dos campos de detenção às costas transformadas em valas comuns do século XXI. No Lixoceno, o lixo não é apenas subproduto: é parte integrante do próprio funcionamento do sistema. Para gerar valor, é preciso simultaneamente gerar descarte.

O modelo socioeconómico-cultural dominante é o motor

Estes são alguns dos seus componentes:

- Extractivismo expandido: não só de minérios e florestas, mas de atenção e afectos. Plataformas tratam emoções como matéria-prima; a sua escassez programada sustenta o ciclo “choque-clique-cansaço-descarte”.

- Financeirização e obsolescência: a pressão por rendimentos de curto prazo acelera ciclos de produto e gera resíduos físicos e sociais. Bauman já via a modernidade como máquina de produção de excedentes humanos; hoje, o excedente é também de dados, conteúdos e ansiedades.

- Fronteirização: o Lixoceno não é homogéneo; é espacialmente seletivo. Barreiras, zonas francas, parques de lixo tóxico e corredores logísticos desenham um mapa onde a limpeza de uns é garantida pela sujidade de outros.

- Cultura da aceleração: o novo substitui o novo antes de significar algo. Isso esmaga memória e cuidado, corta a duração necessária para a compaixão se converter em compromisso — e converte cidadania em fadiga e exaustão.

A toxicidade ontológica

No seu ensaio “Being Dumped” (que já tinha citado anteriormente aqui), Michael Marder conduz a reflexão para a esfera ontológica e ética: nas nossas sociedades modernas não descartamos apenas coisas e pessoas; somos descartados num “dump” ontológico — uma toxicidade do existir em que matéria, significados e corpos se tornam resíduos difusos e descartáveis. O autor escreve: “Vivemos e morremos num depósito [dump] de ideias, corpos, sonhos, materiais, fragmentos de relações, trechos sonoros e memes, descontextualizados e desistoricizados, produzidos como lixo, recortados, isolados e atirados para uma enorme salganhada no que resta do que costumava ser um mundo. (…) Vivendo numa lixeira, somos movidos, produzidos e reproduzidos por ela, como por nós próprios. Em grande parte, e embora tecnicamente vivos, estamos ali a morrer, desmembrados, deitados fora, descartados, alienados da nossa alienação, passando a amá-la ou completamente indiferentes, apáticos, não mais envolvidos, anestesiados com analgésicos fabricados farmacêutica- e ideologicamente. A lixeira vive-nos, vive para nós. Assume o movimento, a produção e a reprodução da mundo-em-destruição, destruindo o próprio ser-mundo do mundo.” Para Marder, “A lixeira global é um deserto que se estende sobre a terra e nas zonas hipóxicas dos oceanos. Quanto mais há, quanto mais cresce — imitando a atividade daquilo a que os gregos chamavam physis e os latinos conheciam como natura —, menores são as oportunidades de florescimento futuro e de crescimento finito.

Marder propõe que não estamos apenas a viver entre desperdício e lixo, mas a ser descartados no próprio plano do ser – uma experiência difusa de contaminação ontológica: significados degradados, mundos comuns corroídos, tempos saturados. Ele escreve: “Num abandono generalizado do ser, o deserto cresce fora e dentro daqueles que o abrigam. Somos abandonados pelo ser na medida em que abandonamos o ser. Hoje — ou melhor: esta noite, na noite rastejante e sem limites do mundo — na noite de hoje, então, o ser está a ser descartado.” A força das palavras de Marder reside em mostrar que o lixo não é meramente resíduo: é regime – o modo como o mundo se organiza quando o valor de troca coloniza o valor de uso da vida. Para Marder não são apenas coisas ou lugares que são descartados, mas também relações, memórias e afectos. Descartar é também negar a coabitação, cortar laços de cuidado.

Fios de saída: contra-lógicas do cuidado e do comum

Se a gramática dominante é a da fadiga e do descarte, como reescrevê-la? Dei algumas pistas nos meus posts sobre preguiça, ócio e atenção (aqui) e sobre deserção (aqui). Aqui passo a acrescentar outras:

- Desaceleração informativa: reduzir o ruído e o frenesim para restituir atenção — não como fuga, mas como reabertura à lucidez e à sensatez (curadoria, jornalismo de soluções, apelos à acção concreta ao invés de pânico difuso).

- Commoning (Dey/Armiero): reconstruir os comuns socioecológicos — água, solo, ar, alimentos, dados, vizinhanças, conhecimento — como infraestruturas de resistência à lógica da mercadorização e do descarte; ver p.ex. aqui (Comuns).

- Política de responsabilização: internalizar custos (ambientais, sociais, informacionais) que foram externalizados para periferias humanas e territoriais.

- Cartografias do Lixoceno: tornar visíveis as redes de descarte (do cobalto ao lixo digital; dos campos de refugiados aos “desertos alimentares”; das “nuvens digitais” às centrais elétricas) e conectá-las às tramas financeiras e legais que as viabilizam.

Do Lixoceno ao Devastoceno

Como vimos, a fadiga não é um efeito colateral isolado, mas parte de um modelo socioeconómico e cultural que precisa do nosso cansaço para funcionar. Cansados, reagimos menos; dessensibilizados, aceitamos mais. O ciclo fecha-se: enquanto alguns acumulam valor, outros (comunidades, ecossistemas e o próprio planeta) acumulam lixo ou são descartados. O Lixoceno parece-se mais com um Devastoceno**, uma era em que a exaustão e o descarte devastam corpos, comunidades e territórios – tal como afirma Marder na segunda citação que abre este post.

No ciclo Fadiga-Dessensibilização-Descarte, a saturação informacional e emocional cria as condições para reproduzir as ‘lixeiras socioecológicas’ e a ‘toxicidade ontológica’ do Lixoceno/Devastoceno — o cansaço bloqueia a empatia politizável e mantém invisível a ‘gestão de excedentes’. A máquina moderna de produzir descartados do capitalismo global (plataformizado e financeirizado) precisa de excedentes humanos e ambientais; Bauman forneceu a chave sociológica, Armiero a chave ecológica, Marder a chave ontológica. Já para Dey, a gestão de excedentes ou descartados torna-se forma de administração institucional da vida e da morte. Mas Armiero e Dey relembram que o Lixoceno também gera linhas de fuga: práticas de comum, solidariedades e contranarrativas capazes de regenerar mundos partilhados e habitáveis – ver também aqui.

Como habitantes do Lixoceno/Devastoceno, fomos treinados para o cansaço e para aceitar o mundo como uma lixeira inevitável. Mas se a fadiga e o descarte são sintomas e instrumentos do modelo dominante, a possibilidade de transformação convida a práticas de ressensibilização: desacelerar para ver, reaprender a cuidar e construir coletivamente alternativas. Os passos críticos para reverter o Devastoceno seriam converter atenção em duração, compaixão em compromisso e indignação em comum. Nomear o Lixoceno, reconhecer as vidas desperdiçadas e admitir o ‘descarte ontológico’ não servem para soçobrar; servem para relocalizar responsabilidade e reterritorializar o cuidado. A saída não é moralista nem individualista: é política, infraestrutural e coletiva. Trata-se de deslocar a atenção do ruído e da fadiga para o que está vivo, de recusar o destino de lixo – para nós, para os outros e para o planeta – bem como a devastação do capitalismo e da modernidade.

Notas:

* Ver p.ex.: Gaboardi & Nunes (2021). Antropoceno, Capitaloceno e Lixoceno: diferentes abordagens sobre as relações sociedade-natureza. (aqui)

** Criei esta palavra a partir da raíz latina do verbo devastar – devasto, devastare – que significa arruinar ou destruir, para enfatizar que o Lixoceno provoca uma devastação de corpos e territórios.

terça-feira, 29 de julho de 2025

Quebrar o feitiço da Modernidade e das narrativas do fim do mundo

Nota prévia: este post inspira-se e amplia um texto que escrevi para o blog do festival Pedras’25 (aqui)

Vivemos entre ruínas - não apenas ecológicas, mas também políticas, epistémicas e sensoriais. Não é novidade afirmar que o mundo está em colapso ou que se aproxima o fim do mundo. O que importaria agora perguntar é: que mundo é esse que está a acabar, e para quem? E sobretudo: que mundos podem ainda ser cultivados a partir das suas cinzas?

É precisamente este o ponto de partida de Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins, livro do casal brasileiro Déborah Danowski (filósofa) e Eduardo Viveiros de Castro (antropólogo) publicado em Portugal em 2023 (ver aqui), mas que teve a sua 1ª edição no Brasil em 2014. Contra a ideia de um apocalipse genérico ou natural, impulsionado por um colapso climático/ambiental ou por um conflito nuclear, os autores afirmam que o que colapsa é um mundo específico — o mundo da Modernidade ocidental, sustentado na separação entre Natureza e Cultura, na aceleração capitalista e na fantasia da universalidade. Esse mundo, ao impor-se como único, condenou outros mundos a desaparecerem. Mas na sua queda, talvez se abram brechas. Nas palavras dos autores: “o fim do mundo já aconteceu para muitos povos; o desafio agora é aprender com quem soube sobreviver ao fim.”


O livro parte da premissa de que o apocalipse já não é um evento futuro ou distante, mas o início de uma nova realidade - o fim do “mundo” como modo-de-vida moderno, marcado pelos valores dualistas, produtivistas, extractivistas e capitalistas. Os autores exploram como esse espectro/medo se manifesta na cultura contemporânea (em particular, no cinema) e no discurso filosófico (citando autores como Dipesh Chakrabarty, Gunther Anders, Bruno Latour ou Isabelle Stengers), não como a destruição total, mas como o colapso do paradigma dominante. Denunciam a cosmopolítica moderna antropocêntrica, sustentada na ideia de que a história é uma trajetória linear rumo à dominação da natureza pela ciência e tecnologia, ou seja, pelo engenho humano. Constatam que esse projeto se voltou contra si próprio, resultando no Antropoceno: uma época em que a Terra/Gaia reage violentamente e uma certa ‘humanidade’ se torna uma força geológica. Danowski e Viveiros de Castro questionam que mundo é esse afinal que estaria a acabar - e para quem. Defendem que o mundo que está a acabar não é “o planeta Terra” enquanto realidade física, nem tampouco “o mundo” no sentido de “todos os mundos possíveis”. O que se encontra em crise terminal é um mundo específico, o “mundo moderno” ocidental, capitalista, antropocêntrico - ou seja, o projeto civilizatório que se autodenomina “universal”, mas que foi historicamente construído sobre a exclusão, o extrativismo e a destruição de outros mundos.


Esta visão tem evidentes paralelismos com a que Vanessa Machado de Oliveira apresenta em “Hospicing Modernity” (2021) e à qual me referi num post anterior. O mundo da Modernidade é caracterizado: (i) pela separação entre Natureza e Cultura, uma dicotomia que fundamenta a ciência moderna, a política liberal e a economia capitalista; (ii) pela ideia de progresso linear, uma flecha temporal que levaria da ignorância à razão, da barbárie à civilização, da subsistência à abundância técnica; e (iii) pelo domínio da humanidade sobre a Terra, que culmina no Antropoceno, onde a acção humana altera irreversivelmente os sistemas terrestres. Assim, o que “acaba” é esta ontologia moderna, esta forma hegemónica de organizar o real - que já não consegue sustentar-se nem fisicamente (pela crise ambiental), nem simbolicamente (pela perda de legitimidade), nem politicamente (pela sua incapacidade de responder aos colapsos que ela mesma gerou).

Mas para quem é que o mundo acaba, afinal? Esta é outra das perguntas a que o livro tenta responder. Danowski e Viveiros de Castro propõem que o fim do mundo não é um evento igual para todos, porque nem todos viveram no mesmo mundo - nem tiveram o privilégio de acreditar na sua universalidade. Para muitos povos indígenas, afrodescendentes, camponeses e habitantes de territórios colonizados, o “fim do mundo” já aconteceu - e mais do que uma vez. A chegada dos colonizadores, a escravatura, o genocídio, o roubo da terra e da autonomia foram catástrofes tão absolutas que, para essas populações, o colapso não é uma ameaça futura, mas uma experiência histórica vivida. Inspirados por cosmologias indígenas, em especial o perspectivismo ameríndio desenvolvido por Viveiros de Castro, os autores contrapõem essas visões ao pensamento ocidental moderno. Nos mundos ameríndios, não há separação entre natureza e cultura, e cada ser humano ou não humano vê-se a si mesmo como humano, mas vê os outros como outros. Essa forma de pensar expressa um modo de existir que nunca perdeu contacto com a Terra-Gaia, e oferece uma possível resiliência pós-colapso pelo exemplo de povos que “já perderam seu mundo” desde a colonização.

Portanto, os autores invertem a lógica comum: para os modernos ocidentais, o mundo está “a acabar agora”, mas para os povos subalternizados, o seu mundo já foi destruído há séculos. E para Gaia (a Terra como sistema vivo), o que pode estar a acontecer é uma resposta activa ao abuso contínuo de um sistema predatório. Esta distinção leva a uma crítica radical ao universalismo moderno: não há um mundo único a acabar, mas sim vários mundos coexistentes, alguns dos quais resistem, outros colapsam, e outros tentam nascer. Essa é também a tese da antropóloga cultural canadiana Natasha Myers, a que aludi em posts anteriores – ver p.ex. aqui.

Segundo Danowski e Viveiros de Castro, as perguntas ‘que mundo acaba?’ e ‘para quem?’ conduzem a um descentramento necessário: a crise climática/ambiental não é só um problema técnico ou “humano em geral”, mas uma crise de uma ontologia dominante que já destruiu mundos e agora enfrenta a sua própria obsolescência; e a resistência e o pensamento de povos que sobreviveram ao fim dos seus mundos (como os ameríndios) não devem ser vistos como “primitivos” ou “românticos”, mas como fontes legítimas de conhecimento sobre como viver após o colapso de um mundo.

Para quebrar o feitiço da história única e da universalização ocidental, Danowski e Viveiros de Castro propõem a ideia de que há vários mundos dentro do mundo como ruptura frontal com a narrativa dominante da modernidade ocidental, que pressupõe um só mundo real (natural, objetivo, científico), uma só história (linear, progressiva, eurocêntrica), e um só destino (tecnológico, globalizado, capitalista). Aquele feitiço sustenta-se naquilo que os autores chamam de mitologia moderna, que nega a possibilidade de múltiplos modos de existência válidos. Ao reconhecer que existem cosmologias, ontologias, temporalidades e ecologias diversas, revela-se que o mundo moderno é apenas um entre outros, e não o ápice inevitável da história. Este gesto decolonizador é potente porque abre espaço para vozes e práticas silenciadas: o que os modernos vêem como “mito” ou “tradição” pode ser, afinal, teoria cosmológica, política ambiental e resistência epistémica.

A constatação da existência de vários mundos não é um relativismo passivo, mas um ponto de partida para uma cosmopolítica activa. Isto significa não só recusar o monopólio ocidental sobre o real e o possível, mas trazer para o centro da política os modos de existência que persistiram apesar da colonização. Os autores defendem que a experiência histórica de povos que já passaram pelo fim dos seus mundos pode ser uma chave política para os tempos de colapso actuais. Estes povos sobreviveram não apenas biologicamente, mas ontologicamente — mantiveram vivas relações, saberes e modos de habitar que escapam à lógica moderna.

Além disso, o reconhecimento de múltiplos mundos obriga a abandonar o projeto totalizante de uma política universal (moderna, estatal, hierárquica) e pensar em termos de alianças trans-ontológicas, onde diferentes formas de vida se articulam sem precisarem de ser reduzidas a uma só norma. Pensar politicamente outros caminhos passa assim por escutar e aprender com mundos que não colapsaram com a modernidade, e por reimaginar a política como um espaço de negociação entre ontologias.


Uma das autoras citadas por Danowski e Viveiros de Castro é a filósofa belga Isabelle Stengers que propõe o conceito de “abrandamento” (ralentissement) como estratégia de resistência ao tempo acelerado e predatório do capitalismo global (que Stengers apelida como “a barbárie que vem”). Esse ritmo imposto — do lucro, da extração, da urgência tecnocrática — é também o ritmo da barbárie: um tempo que não permite pensar, escutar, hesitar, cuidar. O abrandamento cosmopolítico é, segundo Stengers, uma forma de deter o gesto imperial da solução imediata e totalizante, uma estratégia para criar espaços de respiração para os mundos em perigo e uma ética da atenção, que não responde com pressa, mas com escuta e co-presença às situações concretas e às vozes silenciadas. Stengers propõe resistir não com “grandes narrativas”, mas com pequenas práticas de recusa e criação — alianças entre mundos que não se deixam reduzir a um só. Este abrandamento é também cosmopolítico, porque reconhece a multiplicidade de agentes (humanos e não humanos), aceita que nenhum saber tem a totalidade da resposta, e exige modos de convivência que não passem pela eliminação da diferença.


Outro autor invocado por Danowski e Viveiros de Castro é o líder e pensador indígena Ailton Krenak, que propõe uma reviravolta na ideia de futuro, não como um salto em direção a algo novo e inédito, mas um reencantamento com aquilo que já lá estava — e foi ignorado, destruído ou esquecido. O futuro ancestral seria um futuro enraizado nos modos de vida e pensamento dos povos originários, um retorno à terra, não como nostalgia, mas como reactualização da sabedoria que permite existir em relação, e uma recusa da ideia de que o “futuro bom” depende do progresso técnico e da acumulação - ver também aqui. Para Krenak, a Terra é viva, os rios sonham, e os humanos são apenas parte de uma rede ampla de existência. O futuro que vale a pena viver é aquele que não separa o que vive do que pensa, o que sente do que produz, e que honra os laços com quem veio antes e com quem virá depois — humanos e não humanos. Tal como Danowski e Viveiros de Castro, Krenak vê que o mundo moderno acabou, mas não o mundo dos que sabem dançar com o tempo, com os ciclos, com a floresta, com a água.

Quer Stengers, quer Krenak, propõem uma ruptura com o tempo moderno: Stengers, através da recusa da aceleração e da tecnossolução imperial; Krenak, através do enraizamento num tempo ancestral que não é passado, mas possibilidade futura. Ambos recusam o apocalipse como fim total e propõem formas de resistência sensível, não-heroica, de reencantamento do mundo, sem cair em romantismo, e de politização da coexistência com a Terra, em vez da guerra contra ela.


Na perspectiva de pensar e cocriar outros mundos dentro do mundo, volto a invocar Natasha Myers, que nos convida a reaprender a cultivar mundos habitáveis. No seu ensaio How to Grow Livable Worlds, Myers propõe uma viragem botânica e sensorial: em vez de salvar “o planeta” como abstração, devemos envolver-nos concretamente com os seres e territórios com quem coabitamos, em particular com as plantas. Cultivar mundos é um acto de atenção, de escuta, de co-criação — um gesto quotidiano de resistência ao esvaziamento relacional promovido pela ontologia moderna.

Para Myers, o saber que interessa não está nos satélites nem nas megateorias, mas nos gestos subtis de cuidado e interdependência que ainda se praticam em jardins urbanos, hortas comunitárias, florestas protegidas, rituais indígenas, danças com as árvores. É a partir desses microcosmos que se pode reactivar o nosso sensório vegetal e ecológico — adormecido pelo modo como o Ocidente aprendeu a ver o mundo como recurso, e não como relação. A ecologia, aqui, deixa de ser gestão de populações e ecossistemas, e passa a ser arte de coexistência.

Talvez a Modernidade tenha sido, como sugere Natasha Myers, um feitiço lançado sobre o mundo — um encantamento sombrio que nos ensinou a ver a Terra como objeto, o tempo como linha, o outro como primitivo. Um feitiço que nos separou do que éramos: floresta, rio, bicho, sonho. Agora, entre escombros e auroras, cabe-nos tecer outro encantamento, um contra-feitiço que dissipe a névoa da separação e devolva espessura ao viver. Precisamos, como diz Stengers, de um abrandamento, para que os mundos silenciados possam voltar a falar — “com hesitação, sem arrogância, na presença dos outros.” Precisamos, como propõe Krenak, de um futuro com raízes, onde “não sejamos os órfãos da Terra”. Precisamos de ‘hospedar’ o fim com compaixão e compostagem, como defende Vanessa Machado de Oliveira, e deixar morrer o que já morreu — a promessa do progresso sem mundo. E então, talvez, possamos ouvir as plantas sonhar, sentir o chão respirar, cultivar mundos com gestos pequenos, lançar encantamentos de cuidado, escuta e relação. Porque, como lembram Danowski e Viveiros de Castro, “há mundo por vir”, sim — mas ele não virá como um novo império e não será o mesmo para todos. Virá como o retorno de algo que nunca partiu, esperando que finalmente o vislumbremos.

Aceito, por fim, o desafio de Natasha Myers de quebrar o feitiço que nos foi lançado pela Modernidade, convocando os pensamentos e os mundos que resistem (reexistem) dentro do mundo, lançando este contra-feitiço (que entretece todas as vozes que citei):

Feitiço para desfazer o mundo inabitável

Dizem que o fim do mundo está próximo.
Mas que mundo é esse? — E de quem?

Talvez o mundo que está a acabar
seja um feitiço.

Um feitiço lançado pela Modernidade,
um feitiço que nos cegou para o vivo,
que fez do rio um canal, da floresta um recurso,
do tempo uma flecha,
do outro um primitivo.

Esse feitiço ensinou-nos
a esquecer que somos terranos – da Terra, do Húmus.
Que somos relação.
Que somos sonho.

Agora, entre os escombros do progresso,
Saibamos dizer:
não tenham pressa, nem acelerem - abrandem.

Abrandem para escutar os mundos
que ainda falam baixinho,
nas margens, nas rochas, nos corpos que resistem.

Relembremos:
o futuro não está à frente — está sempre ao nosso lado.

O futuro vem dos ancestrais,
vem dos que ainda dançam com os ciclos,
dos que sonham com o rio.

Afirmemos sem hesitar:
não tentem salvar o que já morreu (ou está moribundo).

Deixemos morrer a modernidade com lucidez e gentileza.
E acompanhemo-la com dignidade,
sem a ilusão de que fomos inocentes.

Aceitemos por fim que
há mundo por vir, sim — mas ele não é para todos o mesmo.
Ele não será um novo império.
Será um novo encantamento.

Por isso, talvez seja hora de lançarmos outro feitiço.
Um contra-feitiço.
Um desencantamento do desencantamento.

Com filamentos rizomáticos.
Com escuta.
Com compostagem.

Com mundos por (de)vir,
que não nos pertencem —
mas que nos esperam.

Saibamos evocá-los e nutri-los - simpoieticamente, amorosamente…

domingo, 6 de julho de 2025

Pseudoceno – Adenda com referências adicionais

Nota: este post é uma adenda ao post anterior.

Julian Assange, numa declaração em 2011 que citei no meu post de Março de 2024, afirmou que “os jornalistas são criminosos de guerra”. Esta afirmação pode parecer desnecessariamente categórica, simplista e até injusta, e terá muito possivelmente sido um dos motivos que levou muitos media ocidentais a criticá-lo ou até a abandoná-lo desde então. Mas Assange estava a falar numa acção de protesto contra a fabricação de ‘guerras justas’ pelo Ocidente, em particular as guerras no Afeganistão e Iraque, e usou aquela afirmação como resposta a uma pergunta que ele próprio colocou sobre a cumplicidade dos media: “Quando compreendemos que as guerras surgem como resultado de mentiras espalhadas ao público britânico, ao público americano e ao público de toda a Europa e de outros países, então quem são os criminosos de guerra?

Em relação ao meu post mais recente, quero clarificar dois aspectos. Em primeiro lugar, critiquei os media dominantes ocidentais, mas nada disse sobre o que publicaram os media no Irão ou noutros países que puseram em causa a narrativa do Ocidente. A minha escolha foi premeditada e não se destina a branquear a manipulação e demagogia que também é feita em alguns desses media. É sabido que muitos são controlados ou censurados pelos governos autocráticos desses países e não é de espantar que distorçam a narrativa de modo a satisfazer a agenda dominante. Escolhi focar-me nos media dominantes ocidentais, porque nesta parte do mundo e cultura em que me insiro se apregoa que existe liberdade de informação e que os media são isentos e transmitem a verdade dos factos. Ora acontece que isso simplesmente não corresponde à realidade. Pior ainda, o conteúdo e a forma como as notícias são dadas pretendem legitimar uma agenda belicista ou um dos lados beligerantes, suprimindo ou distorcendo os factos, ou apresentando uma versão enviesada desses factos.

Em segundo lugar e para além das referências que já tinha inserido no post sobre o Pseudoceno, acrescento agora mais alguns links para vídeos e artigos que lançam críticas fundamentadas aos media ocidentais dominantes pelo viés favorável a Israel na sua cobertura, não só do conflito mais recente entre Israel e o Irão, mas também do massacre dos palestinianos em Gaza e na Cisjordânia, desde 2023 (ver p.ex. aqui). O primeiro vídeo da Aljazeera, com depoimentos da historiadora iraniano-americana Assal Rad, especialista no Médio Oriente, foca-se no conteúdo de títulos e resumos das notícias, que são muitas vezes da responsabilidade das redacções editoriais e não necessariamente dos jornalistas que escrevem os artigos – ver aqui. Rad tem vindo a fazer o exercício de corrigir os títulos de modo a reflectir a realidade que alegam descrever - ver aqui. Num artigo de opinião recente, o académico de ciência política Ali Abootalebi critica e desconstrói os mitos veiculados por media internacionais como a BBC e a Reuters sobre o Irão. Já o editor do site Countercurrents, Binu Matthew, alerta para o desvio de atenção dos media ocidentais em relação aos continuados massacres em Gaza perpetrados por Israel, causado pelo conflito entre Israel e o Irão - aqui.

Os restantes vídeos referem-se a análises das decisões editoriais recentes da BBC sobre artigos ou reportagens publicados no seu site relativos ao que se passa em Gaza deste 2023, cujo conteúdo foi distorcido a favor de Israel, ou sobre a supressão de narrativas desfavoráveis:

- comentário e discussão sobre relatório do Center for Media Monitoring (BBC On Gaza-Israel: One Story, Double Standards) que revela a dimensão do viés favorável a Israel na cobertura noticiosa da BBC do conflito em Gaza (Owen Jones): https://youtu.be/052e22XabME  

- comentário à decisão da BBC de não exibir o documentário “Gaza: medics under fire”* que havia sido encomendado pela própria BBC sobre o trabalho das equipas médicas em Gaza e que lhe valeram acusações de ‘censura política’ (Novara Media): https://youtu.be/2PWDEykH944

- comentário sobre conteúdo do site da BBC que suprime informação disponível sobre o arsenal nuclear de Israel (Novara Media): https://youtu.be/JxEAsd_fR-I - ver também aqui.

Em relação às sucessivas incorreções e distorções por parte da BBC, foi divulgada uma carta aberta subscrita por mais de 300 personalidades mediáticas britânicas, incluindo mais de 100 jornalistas da própria BBC, a denunciar a situação e a acusar a BBC de forçar os seus jornalistas a fazer propaganda pró-Israel - ver aqui ou aqui. A propósito do conteúdo desta carta aberta, recomendo ainda artigo de opinião escrito pela ex-jornalista da BBC, Karishma Patel.


* O documentário está agora disponível sob o nome “Gaza:doctors under attack” através dos sites do Channel 4 ou da Zeteo (requerem subscrição).