Nota prévia: este post inspira-se e amplia um texto que escrevi para o blog do festival Pedras’25 (aqui)
Vivemos entre ruínas - não apenas ecológicas, mas também
políticas, epistémicas e sensoriais. Não é novidade afirmar que o mundo está em
colapso ou que se aproxima o fim do mundo. O que importaria agora perguntar é: que mundo é
esse que está a acabar, e para quem?
E sobretudo: que mundos podem ainda ser cultivados a partir das suas cinzas?
É precisamente este o ponto de partida de Há
mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins, livro do casal
brasileiro Déborah Danowski (filósofa)
e Eduardo Viveiros de Castro
(antropólogo) publicado em Portugal em 2023 (ver aqui), mas que teve a
sua 1ª edição no Brasil em 2014. Contra a ideia de um apocalipse genérico ou
natural, impulsionado por um colapso climático/ambiental ou por um conflito
nuclear, os autores afirmam que o que colapsa é um mundo específico — o mundo da Modernidade
ocidental, sustentado na separação entre Natureza e Cultura, na aceleração
capitalista e na fantasia da universalidade. Esse mundo, ao impor-se como
único, condenou
outros mundos a desaparecerem. Mas na sua queda, talvez se
abram brechas. Nas palavras dos autores: “o
fim do mundo já aconteceu para muitos povos; o desafio agora é aprender com
quem soube sobreviver ao fim.”
O livro parte da premissa de que o apocalipse já não é um evento futuro ou distante, mas o início de uma nova realidade - o fim do “mundo” como modo-de-vida moderno, marcado pelos valores dualistas, produtivistas, extractivistas e capitalistas. Os autores exploram como esse espectro/medo se manifesta na cultura contemporânea (em particular, no cinema) e no discurso filosófico (citando autores como Dipesh Chakrabarty, Gunther Anders, Bruno Latour ou Isabelle Stengers), não como a destruição total, mas como o colapso do paradigma dominante. Denunciam a cosmopolítica moderna antropocêntrica, sustentada na ideia de que a história é uma trajetória linear rumo à dominação da natureza pela ciência e tecnologia, ou seja, pelo engenho humano. Constatam que esse projeto se voltou contra si próprio, resultando no Antropoceno: uma época em que a Terra/Gaia reage violentamente e uma certa ‘humanidade’ se torna uma força geológica. Danowski e Viveiros de Castro questionam que mundo é esse afinal que estaria a acabar - e para quem. Defendem que o mundo que está a acabar não é “o planeta Terra” enquanto realidade física, nem tampouco “o mundo” no sentido de “todos os mundos possíveis”. O que se encontra em crise terminal é um mundo específico, o “mundo moderno” ocidental, capitalista, antropocêntrico - ou seja, o projeto civilizatório que se autodenomina “universal”, mas que foi historicamente construído sobre a exclusão, o extrativismo e a destruição de outros mundos.
Esta visão tem evidentes paralelismos com a que Vanessa Machado de Oliveira apresenta em “Hospicing Modernity” (2021) e à qual me referi num post anterior. O mundo da Modernidade é caracterizado: (i) pela separação entre Natureza e Cultura, uma dicotomia que fundamenta a ciência moderna, a política liberal e a economia capitalista; (ii) pela ideia de progresso linear, uma flecha temporal que levaria da ignorância à razão, da barbárie à civilização, da subsistência à abundância técnica; e (iii) pelo domínio da humanidade sobre a Terra, que culmina no Antropoceno, onde a acção humana altera irreversivelmente os sistemas terrestres. Assim, o que “acaba” é esta ontologia moderna, esta forma hegemónica de organizar o real - que já não consegue sustentar-se nem fisicamente (pela crise ambiental), nem simbolicamente (pela perda de legitimidade), nem politicamente (pela sua incapacidade de responder aos colapsos que ela mesma gerou).
Mas para quem
é que o mundo acaba, afinal? Esta é outra das perguntas a que o livro tenta
responder. Danowski e Viveiros de Castro propõem que o fim do mundo não é um
evento igual para todos, porque nem todos viveram no mesmo mundo - nem tiveram
o privilégio de acreditar na sua universalidade. Para muitos povos indígenas,
afrodescendentes, camponeses e habitantes de territórios colonizados, o “fim do
mundo” já aconteceu - e mais do que uma vez. A chegada dos colonizadores, a
escravatura, o genocídio, o roubo da terra e da autonomia foram catástrofes tão
absolutas que, para essas populações, o colapso não é uma ameaça futura, mas
uma experiência histórica vivida. Inspirados por cosmologias indígenas, em
especial o perspectivismo ameríndio desenvolvido por Viveiros de Castro, os
autores contrapõem essas visões ao pensamento ocidental moderno. Nos mundos
ameríndios, não há separação entre natureza e cultura, e cada ser humano ou não
humano vê-se a si mesmo como humano, mas vê os outros como outros. Essa forma
de pensar expressa um modo de existir que nunca perdeu contacto com a Terra-Gaia,
e oferece uma possível resiliência pós colapso pelo exemplo de povos que “já perderam seu mundo” desde a
colonização.
Portanto, os autores invertem a lógica comum: para os modernos ocidentais, o mundo está “a acabar agora”, mas para os povos subalternizados, o seu mundo já foi destruído há séculos. E para Gaia (a Terra como sistema vivo), o que pode estar a acontecer é uma resposta activa ao abuso contínuo de um sistema predatório. Esta distinção leva a uma crítica radical ao universalismo moderno: não há um mundo único a acabar, mas sim vários mundos coexistentes, alguns dos quais resistem, outros colapsam, e outros tentam nascer. Essa é também a tese da antropóloga cultural canadiana Natasha Myers, a que aludi em posts anteriores – ver p.ex. aqui.
Segundo Danowski e Viveiros de Castro, as perguntas ‘que mundo acaba?’ e ‘para quem?’ conduzem a um descentramento necessário: a crise climática/ambiental não é só um problema técnico ou “humano em geral”, mas uma crise de uma ontologia dominante que já destruiu mundos e agora enfrenta a sua própria obsolescência; e a resistência e o pensamento de povos que sobreviveram ao fim dos seus mundos (como os ameríndios) não devem ser vistos como “primitivos” ou “românticos”, mas como fontes legítimas de conhecimento sobre como viver após o colapso de um mundo.
Para quebrar
o feitiço da história única e da universalização ocidental, Danowski e Viveiros
de Castro propõem a ideia de que há
vários mundos dentro do mundo como ruptura frontal com a narrativa
dominante da modernidade ocidental, que pressupõe um só mundo real (natural,
objetivo, científico), uma só história (linear, progressiva, eurocêntrica), e
um só destino (tecnológico, globalizado, capitalista). Aquele feitiço
sustenta-se naquilo que os autores chamam de mitologia moderna, que nega a
possibilidade de múltiplos modos de existência válidos. Ao reconhecer que
existem cosmologias, ontologias, temporalidades e ecologias diversas, revela-se
que o mundo moderno é apenas um entre outros, e não o ápice inevitável da
história. Este gesto decolonizador é potente porque abre espaço para vozes e
práticas silenciadas: o que os modernos vêem como “mito” ou “tradição” pode
ser, afinal, teoria cosmológica, política ambiental e resistência epistémica.
A constatação
da existência de vários mundos não é um relativismo passivo, mas um ponto de
partida para uma cosmopolítica activa.
Isto significa não só recusar o monopólio ocidental sobre o real e o possível,
mas trazer para o centro da política os modos de existência que persistiram
apesar da colonização. Os autores defendem que a experiência histórica de povos
que já passaram pelo fim dos seus mundos pode ser uma chave política para os
tempos de colapso actuais. Estes povos sobreviveram não apenas biologicamente,
mas ontologicamente — mantiveram vivas relações, saberes e modos de habitar que
escapam à lógica moderna.
Além disso, o reconhecimento de múltiplos mundos obriga a abandonar o projeto totalizante de uma política universal (moderna, estatal, hierárquica) e pensar em termos de alianças trans-ontológicas, onde diferentes formas de vida se articulam sem precisarem de ser reduzidas a uma só norma. Pensar politicamente outros caminhos passa assim por escutar e aprender com mundos que não colapsaram com a modernidade, e por reimaginar a política como um espaço de negociação entre ontologias.
Uma das autoras citadas por Danowski e Viveiros de Castro é a filósofa belga Isabelle Stengers que propõe o conceito de “abrandamento” (ralentissement) como estratégia de resistência ao tempo acelerado e predatório do capitalismo global (que Stengers apelida como “a barbárie que vem”). Esse ritmo imposto — do lucro, da extração, da urgência tecnocrática — é também o ritmo da barbárie: um tempo que não permite pensar, escutar, hesitar, cuidar. O abrandamento cosmopolítico é, segundo Stengers, uma forma de deter o gesto imperial da solução imediata e totalizante, uma estratégia para criar espaços de respiração para os mundos em perigo e uma ética da atenção, que não responde com pressa, mas com escuta e co-presença às situações concretas e às vozes silenciadas. Stengers propõe resistir não com “grandes narrativas”, mas com pequenas práticas de recusa e criação — alianças entre mundos que não se deixam reduzir a um só. Este abrandamento é também cosmopolítico, porque reconhece a multiplicidade de agentes (humanos e não humanos), aceita que nenhum saber tem a totalidade da resposta, e exige modos de convivência que não passem pela eliminação da diferença.
Outro autor invocado por Danowski e Viveiros de Castro é o líder indígena Ailton Krenak, que propõe uma reviravolta potente na ideia de futuro, não como um salto em direção a algo novo e inédito, mas um reencantamento com aquilo que já lá estava — e foi ignorado, destruído ou esquecido. O futuro ancestral seria um futuro enraizado nos modos de vida e pensamento dos povos originários, um retorno à terra, não como nostalgia, mas como reactualização da sabedoria que permite existir em relação, e uma recusa da ideia de que o “futuro bom” depende do progresso técnico e da acumulação - ver também aqui. Para Krenak, a Terra é viva, os rios sonham, e os humanos são apenas parte de uma rede ampla de existência. O futuro que vale a pena viver é aquele que não separa o que vive do que pensa, o que sente do que produz, e que honra os laços com quem veio antes e com quem virá depois — humanos e não humanos. Tal como Danowski e Viveiros de Castro, Krenak vê que o mundo moderno acabou, mas não o mundo dos que sabem dançar com o tempo, com os ciclos, com a floresta, com a água.
Quer Stengers, quer Krenak, propõem uma ruptura com o tempo moderno: Stengers, através da recusa da aceleração e da tecnossolução imperial; Krenak, através do enraizamento num tempo ancestral que não é passado, mas possibilidade futura. Ambos recusam o apocalipse como fim total e propõem formas de resistência sensível, não heroica, de reencantamento do mundo, sem cair em romantismo, e de politização da coexistência com a Terra, em vez da guerra contra ela.
Na perspectiva de pensar e cocriar outros mundos dentro do mundo, volto a invocar Natasha Myers, que nos convida a reaprender a cultivar mundos habitáveis. No seu ensaio How to Grow Livable Worlds, Myers propõe uma viragem botânica e sensorial: em vez de salvar “o planeta” como abstração, devemos envolver-nos concretamente com os seres e territórios com quem coabitamos, em particular com as plantas. Cultivar mundos é um acto de atenção, de escuta, de co-criação — um gesto quotidiano de resistência ao esvaziamento relacional promovido pela ontologia moderna.
Para Myers, o saber que interessa não está nos satélites nem nas megateorias, mas nos gestos subtis de cuidado e interdependência que ainda se praticam em jardins urbanos, hortas comunitárias, florestas protegidas, rituais indígenas, danças com as árvores. É a partir desses microcosmos que se pode reactivar o nosso sensório vegetal e ecológico — adormecido pelo modo como o Ocidente aprendeu a ver o mundo como recurso, e não como relação. A ecologia, aqui, deixa de ser gestão de populações e ecossistemas, e passa a ser arte de coexistência.
Talvez a Modernidade tenha sido, como sugere Natasha Myers, um feitiço lançado sobre o mundo — um encantamento sombrio que nos ensinou a ver a Terra como objeto, o tempo como linha, o outro como primitivo. Um feitiço que nos separou do que éramos: floresta, rio, bicho, sonho. Agora, entre escombros e auroras, cabe-nos tecer outro encantamento, um contra-feitiço que dissipe a névoa da separação e devolva espessura ao viver. Precisamos, como diz Stengers, de um abrandamento, para que os mundos silenciados possam voltar a falar — “com hesitação, sem arrogância, na presença dos outros.” Precisamos, como propõe Krenak, de um futuro com raízes, onde “não sejamos os órfãos da Terra”. Precisamos de ‘hospedar’ o fim com compaixão e compostagem, como defende Vanessa Machado de Oliveira, e deixar morrer o que já morreu — a promessa do progresso sem mundo. E então, talvez, possamos ouvir as plantas sonhar, sentir o chão respirar, cultivar mundos com gestos pequenos, lançar encantamentos de cuidado, escuta e relação. Porque, como lembram Danowski e Viveiros de Castro, “há mundo por vir”, sim — mas ele não virá como um novo império e não será o mesmo para todos. Virá como o retorno de algo que nunca partiu, esperando que finalmente o vislumbremos.
Aceito, por
fim, o desafio de Natasha Myers de quebrar o feitiço que nos foi lançado pela
Modernidade, convocando os pensamentos e os mundos que resistem (reexistem) dentro do mundo, lançando
este outro (que entretece todas as vozes que citei):
Feitiço
para desfazer o mundo inabitável
Dizem que o fim
do mundo está próximo.
Mas que mundo é esse? — E de quem?
Talvez o mundo
que está a acabar
seja um feitiço.
Um feitiço
lançado pela Modernidade,
um feitiço que nos cegou para o vivo,
que fez do rio um canal, da floresta um recurso,
do tempo uma flecha,
do outro um primitivo.
Esse feitiço
ensinou-nos
a esquecer que somos terranos – da Terra, do Húmus.
Que somos relação.
Que somos sonho.
Agora, entre
os escombros do progresso,
Saibamos dizer:
não tenham pressa, nem acelerem - abrandem.
Abrandem para
escutar os mundos
que ainda falam baixinho,
nas margens, nas rochas, nos corpos que resistem.
Relembremos:
o futuro não está à frente — está
sempre ao nosso lado.
O futuro vem
dos ancestrais,
vem dos que ainda dançam com os ciclos,
dos que sonham com o rio.
Afirmemos sem
hesitar:
não tentem salvar o que já morreu (ou
está moribundo).
Deixemos morrer
a modernidade com lucidez e gentileza.
E acompanhemo-la com dignidade,
sem a ilusão de que fomos inocentes.
Aceitemos por
fim que
há mundo por vir, sim — mas ele não é
para todos o mesmo.
Ele não será um novo império.
Será um novo encantamento.
Por isso,
talvez seja hora de lançarmos outro feitiço.
Um contra-feitiço.
Um desencantamento do desencantamento.
Com filamentos
rizomáticos.
Com escuta.
Com compostagem.
Com mundos por
(de)vir,
que não nos pertencem —
mas que nos esperam.
Saibamos evocá-los
e nutri-los - simpoieticamente, amorosamente…